Conto  do livro Exercício para o salto, de Cláudio Aguiar


Depoimento de um sábio

   Eu não queria vir. Onde eu estava não era o melhor lugar do mundo, porque poderia ser dentro do mar, no pico da cordilheira ou onde não haja um homem odiando a outro homem. Poderá ser na milésima partícula do glóbulo sanguíneo que corre em vielas ou cachoeiras de seres multiplicados por essas bandas de lá. São tantas as coisinhas que correm por aí, que não tenho nem tempo de dizer se sou uma dessas ou se delas eu poderia povoar o Universo. Sou nada e tanta coisa ao mesmo tempo, que vale a pena ser. Ser ainda é a mais cruel das provações para quem pensava não ser nada. Ver o tempo e cair no espaço dele, equivale a definir concretamente a existência. Dizer que é, é negar a negação de si mesmo. O que eu seria se não fosse o Sábio Almirante, veículo portátil do meu destino de existir? Quedaria sufocado pelo que não fui, resto do sonho não sonhado. E o que não tem vida nos movimentos multiformes da matéria que preenche as vielas ou cachoeiras do meu corpo? Que pensar sobre elas?
   O pensar – parece-me agora – quer dizer o sensível efeito de poder deduzir. E dessa digressão, afirmar categórico que não existe tempo nem espaço ou que são meras convenções, é o mesmo que não admitir o poder de pensar. Uma coisa me diz:
   – “Almirante, não pense no tempo nem no espaço.
   – Isso não passa de limitação de quem quer situar-se dentro de sua insignificância como ente de carreira (...) certa. Os gens não existem para viver, mas para morrer. Eles nascem porque precisam correr e morrer. As vielas são formadas de carcaças esclerosadas, cansadas de tanto se movimentarem dentro do espaço limitado. E ficam desanimadas e, quando param, são incorporadas à massa falida da estática. E a paralisação explica o surgimento do tecido. Tudo corre. E quando nada mais pode correr, tem que passar para o inverso do que foi. Sempre se exigiu a renovação do velho, o que equivale a dizer: o novo é o velho que já foi novo. Então, não há velho, mas sempre um novo, como o material que forma o tecido equilibracional da fluidez da vida. Diria melhor, o movimento das coisinhas que adormecem quando o trem cósmico entra no ocaso, como sugere a hediondez do vaso num quarto escuro. Ou melhor, complicando mais um pouco, a placidez da boneca olhando para a criança que vai acordando para a descoberta fatal. Enquanto criança pensa que vive para a vida, a vida é que vai desfalecendo até que ela não pense mais na boneca que já envelheceu também, assim como o vaso ficou sujo.
   A vida acompanha a fluidez dos movimentos. Nada para, tudo gira. Um homem que relativizou as coisas, enganou-se redondamente. As maiores verdades que estão aí definidas, eu, o sábio Almirante, que pelo que sei não queria vir, afirmo que não passam de grandes mentiras. O que é redondo, nunca o foi. A reta sempre foi uma curva. Dizem que o infinito não tem começo nem fim. Mas agora eu digo que ele começa no pensar. A relatividade das coisinhas de que falo, sempre foram díspares em qualidade, quantidade, tempo e espaço. A equivalência das proporções são neutralidades sem a menor relação entre si. O princípio do fim, poderá ser o meio do infinito, o melhor local para gente se situar é não se preocupar com o começo ou o fim de vida, se bem que tudo possa situar-se no pensar... Eu estou no meio do fim, o limite entre o nascimento e a morte. A fase pior, por sinal. O infinito é um plano sem superfície, exatamente para contrariar a ingenuidade dos gênios. Se o plano tivesse superfície, esta seria totalmente limitada e a gente deixaria de viver em transe.
   A cada instante que eu começava a ver situações indefinidas, pedaços de árvores, pedras prolongadas, áreas se transpondo de lugares em velocidades assombrosas, reservava a minha sabedoria para convencer o mundo. Não sei bem a razão, mas acordava sozinho. Em tudo que se deparava aos meus olhos votava uma imprecisa correlação. Verdade que aprendi de ninguém. Tudo começou a existir no momento em que os gens do pensar saíram do meu claustro cefálico e atingiram a exterioridade móvel dos objetos. E essa manifestação veio exatamente beneficiar a condição essencial da criação. Criar do nada é tão fácil como interromper a corrente entre o órgão seletor e os dados que se auto-selecionam.
   Não se deve esquecer de que a nossa vida é um transe. No dia em que um homem acordar será perigoso para o resto dos homens. Aí, acontece aquela revelação que ninguém conseguiu saber: a morte do segredo. E eu suspeito de que me colocaram aqui, entre grades de ferro, porque eu estava acordando... Essa minha deportação foi testemunhada apenas por Tarará, um gênio que vende empadas, bolos-de-goma, pastéis e coxinhas das encostas dos Montes Guararapes ao Farol de Olinda, cantando e dançando sem parar. Eu ouvi ele dizer:
   – “Vão levando o Sábio Almirante, mas aposto a vida como ele não é louco”.

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