Ensaio


Francisco Julião, uma biografia

                                                                                         PRÓLOGO

                                                                         Cabra marcado para morrer

Um homem franzino e magro, com cerca de 1,65m de altura, frágil de saúde (padecia de crônica enxaqueca), vasta cabeleira escura em constante desalinho a cobrir-lhe a cabeça grande e desproporcional para o resto do corpo mirrado, testa proeminente, nariz avultado e lábios carnosos, caminhava sob sol inclemente. Ia sozinho e despreocupado, por uma das margens do Capibaribe, rio cantado nos versos de Manuel Bandeira, o mais ilustre poeta do Recife. Com o olhar penetrante e animado por um alegre sorriso – gestos que pareciam proporcionar-lhe nova dimensão física –, dirigia-se ao Palácio Joaquim Nabuco, sede da Assembleia Legislativa de Pernambuco, onde exercia o mandato de deputado estadual.
   Possuía traços indígenas, não propriamente negroides. Lembravam as típicas características dos caboclos, assim denominados os nascidos de brancos com índios. Começava a aparecer-lhe na cabeça mecha de cabelos brancos por entre os tufos pretos desalinhados. Às vezes, falava tão baixo, que adquirira o hábito de chamar para junto de si o interlocutor com gesto de confidência, ao levar aos lábios o dedo indicador da mão direita.
   Este homem, de aparência tão frágil, quando falava, quer nos parlamentos, quer nos auditórios de centros culturais ou políticos, quer na praça pública, quer em simples conversas amistosas, sabia encantar e cativar seus interlocutores com voz mansa e movimentos solenes. Nessas ocasiões, tomava-o misteriosa metamorfose, fenômeno só vivido pelos famosos oradores: agigantava-se de tal sorte, que conseguia transmitir suas ideias à mente e ao coração dos ouvintes com extrema facilidade.
   Impulsionado por tão extraordinário poder de convencimento, há anos, com perseverante austeridade de caráter e rigidez moral, alimentado por vocação de místico, ele conseguiu levar aos camponeses de sua região as boas novas sobre uma libertação aparentemente impossível: o camponês ter acesso à terra para trabalhar, criar a família e construir a riqueza do Brasil.
   Naquela tarde, como anunciara a imprensa do dia anterior, ele pronunciaria um discurso com graves denúncias sobre as atrocidades cometidas por policiais a mando de latifundiários que não aceitavam a associação de camponeses às ligas. Àquela hora, ele não sabia que, a pouca distância, lentamente, vinha aproximando-se dele um automóvel em cujo banco traseiro estava um homem decidido a assassiná-lo naquela calçada, às margens do poético rio Capibaribe.
   O pretenso assassino – escalado em secreta reunião de inimigos das Ligas Camponesas –, com ademanes bruscos e rápidos, desabotoou o coldre da arma, liberou a pistola e a engatilhou. Por ser militar, naquele momento à paisana, campeão de tiro em sua corporação, sabia, com absoluta segurança, que não perderia nenhuma das balas prestes a serem disparadas contra sua vítima indefesa (FJ a FGV/CPDOC, 1982:64).
   De súbito, antes de o carro emparelhar-se com o deputado, o homem ordenou ao motorista:
   – Volte para casa! O motorista obedeceu à ordem imediatamente. Girou o carro à esquerda, tomou uma pequena rua e desapareceu adiante, contornando o palácio da Assembleia. Que passara, naquele instante, na mente do homem decidido a matar aquele agitador social?
   Não era a primeira nem seria a última tentativa de assassinato do parlamentar do Partido Socialista Brasileiro.
   Indiferente ao perigo que o rondara, o deputado continuou a caminhar. Parou, olhou para as águas tranquilas e mornas do Capibaribe, voltou o olhar para os carros da rua e, no momento propício, atravessou-a. Entrou pela porta da frente da Casa de Joaquim Nabuco. Daí a poucos minutos, após as saudações de praxe aos colegas, amigos e correligionários, assumiu sua cadeira. Mais tarde, quando autorizado a fazer uso da palavra, subiu à tribuna e iniciou seu discurso. Alguns camponeses nas galerias, tímidos e assustados, ouviram as palavras incisivas de seu líder a denunciar mais um crime cometido contra um camponês... Tragédia desmedida! Enlutara não só a família de Antonio Mata, mas também todas as famílias pernambucanas, disse.
   Entre a causa do crime e a consumação havia brutal desproporção. O velho camponês Antonio Mata, morador do engenho Califórnia, pelo simples fato de ter-se associado às Ligas Camponesas, viu, impotente, seu casebre ser invadido pela polícia e um dos filhos violentamente assassinado. Dias depois, por causa do incidente entre um senhor de terras vizinho ao Califórnia e outra família de camponeses que acabara de associar-se à Liga, a polícia, comandada por um sargento, invadiu também o sítio do velho Mata que nenhuma relação, nem mesmo remota, mantinha com o caso.
   Ouçamos, porém, Julião contar a segunda parte da tragédia, como de fato fizera naquela tarde, no plenário da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Aliás, sob o choro e pesada emoção de dona Maria Mata, mãe dos filhos sacrificados que se achava nas galerias, no grupo de camponeses, pois Julião costumava levar os camponeses agredidos pela polícia ou capangas contratados pelos latifundiários para serem vistos pelos seus pares da Assembleia, pela imprensa e pelo público presente.
   – “A polícia entra pelo oitão, viola a camarinha, joga os trastes de pernas para o ar, quebra os potes e as panelas de barro a coronhadas, criva as portas e as paredes de balas de fuzil, interroga, aterroriza, espanca, mata as crias miúdas do terreiro. Vai além. Agarra um dos filhos do velho Manuel, passa-lhe pela cintura um laço de corda de agave e o prende à traseira do jipe que se põe em marcha. A velha mãe de Manuel, neta de índio, de caboclo do mato, paciente, estóica, habituada ao sofrimento, precipita-se atrás do filho, pede, grita, implora, tenta segurá-lo, mas nunca o alcança, porque o jipe aumenta a marcha cada vez mais, até que ela perde as forças e se deixa ficar de joelhos com as mãos para o alto clamando pela Virgem. Manuel tem de aumentar o passo, de correr, de pular, equilibrando-se para não cair, mas, finalmente, cai, e é arrastado por cima de pau e pedra. A roupa se rasga, a pele se esfola, o sangue começa a minar das pernas, dos braços, do peito, da cara, mas da sua garganta não sai uma palavra, nem se ouve um gemido. Nada. O sargento, o cabo e os soldados se divertem com a carreira, os saltos e tombos de Manuel que não resiste mais e perde os sentidos. Não passa, agora, de uma posta de sangue, que rola desgovernada por baixo da poeira que o jipe vai levantando de caminho afora. Três quilômetros durou o suplício de Manuel. Um soldado, a mando do sargento, cortou de facão a corda, e o jipe disparou para a cidade. A missão fora cumprida. Quem iria queixar-se ao delegado se o delegado era o sargento? Veio o velho Mata com os filhos e levaram Manuel numa rede para casa.
   Quando voltou a si estava deitado sobre um leito de folhas verdes de bananeira e trazia as feridas curadas com leite de mangará, que estanca rapidamente o sangue. Mas daí por diante Manuel deixara de ser o mesmo homem. Sararam as feridas e enfermou-se da mente. Mais uma denúncia. Mais um inquérito. O retrato do velho Mata e da família na imprensa. Como sempre, a crônica policial que é a página social do camponês. E tudo acaba em nada.
   Pela primeira vez tenho diante de mim a velha Maria Mata, como um bronze vivo, que diz tudo pelos olhos e quase nada pela boca. Manuel, porém, não viu nascer o sétimo filho que tomou o seu nome. A Liga levantou uma casa para ele noutras terras. Mas no dia em que teve a família agasalhada, foi até o local que dava para a estrada, onde a Liga se reúne, sentou-se, tomou a peixeira e, de repente, abriu a barriga de um lado para o outro, tirou de dentro os intestinos e cortou em pedaços que atirava para longe, até cair sem dar um gemido. Conduzido às pressas para um hospital, o coração de Manuel deixou de bater na sala de cirurgia” (Julião, 1975:166-167).
As últimas palavras do orador soaram com o peso adicional da dor, pungentes, cortantes como a saudade e o vazio que, dali para frente, invadiam os corações daquela família dilacerada pela violência. Por isso, ninguém ousou aplaudi-lo. Não era preciso. Cumprira o dever de defensor daquela desvalida classe social. A denúncia fora feita, sem rebuço, com detalhes crus e chocantes sobre o gesto final do camponês desesperado. Os anais da Casa de Joaquim Nabuco, naquela tarde, ampliavam-se com relatos extremamente trágicos, os quais poderiam ser evitados se algumas pessoas envolvidas no episódio retirassem de seus olhos a venda escura da insensibilidade social. Eis o sentido das palavras do orador. Terminado o expediente da Assembleia, Julião despediu-se dos colegas parlamentares, dos camponeses presentes e dos demais amigos. Em seguida, saiu pela porta frontal. Outra vez via-se só às margens do rio Capibaribe. Sentiu a brisa correr com facilidade. A noite se aproximava. O cenário estava preparado para mais uma caminhada até o Centro da cidade. Ele, então, despreocupado, andou devagar pela calçada, à margem do rio, pela rua da Aurora e, mais adiante, perdeu-se no meio da multidão. 

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