Abertura do romance Caldeirão, de Cláudio Aguiar


Caldeirão

O SENHOR, PELO que vejo não é do Cariri. Nem se preocupa com a cega-rega dos velhos sinos.
   Ah, me desculpe o modo de dizer as coisas, mas o senhor precisa ouvir, de dita palavra, o viver, o trabalhar, o lutar e o refregar do povo daqui dado às autoridades desconstituídas pelo tempo...
   Oh menino, abre a porta da casa. O pessoal se juntando assim na rua arrisca o bicho antes do tempo e eu, pelo que sei, não vou fazer comício hoje não. Abre a porta e deixa a curiosidade entrar.
   Como o senhor é de fora, antes de explicar o porquê da renitência dos sinos contra os ouvidos de Juazeiro do Norte, convém gotejar pingos de esclarecimentos sobre a origem do Vale do Cariri e o que os selvagens perderam para os senhores brancos da Casa-da-Torre-da-Bahia, um mundo fora daqui. Depois, posso falar da Santa Cruz do Deserto, enterrada no Caldeirão, acima daquela ponta de serra.
   Eram senhores de perneiras longas decididos a andar por estradas ocupadas pelas traições e violências, país acima, país abaixo. Todos, subindo e descendo, levando o lucro dos que honram a bondade do sol com a pele na quentura jorrosa de lágrimas do trabalho.
   Abre a porta, menino, deixa o povo entrar para ouvir as lamentações deste espírito corporal. Se não sabe, compreenda o senhor que os nossos olhos são pontos acesos no corpo. Os ouvidos, talvez sejam os pés dos mudos. Os braços podem ser o preparador de letras das palavras. E é por isso que as visões entram pelos sentidos e nos assustam. Eu já tive muitas e esta minha cabeça, cansada de tantos janeiros passados, pede conversa. Preciso me livrar de algumas assombrações. Eu não quero sobrosso dentro de mim.
   Os Cariris — donos do Céu, do Sol, da Terra, da Lua, dos Ventos, dos Rios, dos Espantos e das Festas nas Caatingas — de repente ouviram as recomendações de homens de cabeças santas e de vestes sagradas pela sabedoria divina:
   — Deus está em toda parte. Nos currais livres dos campos do vale, os índios se convenceram de que o onipotente Badzé dominava todos os lugares. Então, os santos padres das missões ouviram a voz de fortes espíritos selvagens:
   — Para que nos levar a outras ribeiras? Estas, onde estamos, não são também de El-Rei? Se é para nos fazer filhos de Deus, para que sairmos daqui se Ele está em toda parte?
   Encrespou-se o tempo nos vagidos dos bois sonolentos. A sede capuchal amainou a voz dos falantes. O dia foi curto para sentir o malogro das ideias. A luta crescia nos tinidos surdos dos peixes presos nas pedras sem museu sobre a terra. Quem não se atreveria a alvejar aqueles avoengos vultos, caga-fogos ardentes de veredas sombreadas? Quem não ousaria dizer lorotas desconcertantes, enganos leves, embriagadores, por via de palavras desnecessárias?
   O silêncio dos bois invadia o vago do tempo, sem rugidos. Um grupo chegava, outro saía. Os cochichos nas alcovas abafadas das casas-grandes, soprados pelos beiços de senhores donos de bois, se transformavam em gritos, enquanto rifles eram lustrados. Aqui mesmo neste vale, onde os homens ainda teimam em alimentar os riachos com lágrimas, os cultivadores de couro entregaram-se ao brinquedo do lucro.
   Os Cariris, gente de passos livres sobre a terra, pisaram cautelosos. O fogo rondava os seus corpos. Os mortos, só estes, ouviam o canto de Badzé, o mestre da Ordem, da Guerra, Pai dos Rumos e dos Esconderijos sem Veredas. Os vivos escutavam o ronco das labaredas voadoras contra suas costas puladas, antecipando o cheiro do metal sonante dos senhores novos, ganhadores das ribeiras e dos vales.
   Ah, meu Badzé: acende o cachimbo e joga bordoadas de fumaça contra os olhos de Ariosa, de Medrado ou mesmo D'Ávila. Se quiser, arrote cinza de corpos purificados na valentia para espantar o capeta das redondezas de nossos roçados. Faça isso, porque a memória não falha quando se conta uma história clara na escuridão desse infinito por dentro... Ah, este País dos Cariris!
   Do que eu aprendi, após anos de vida no Caldeirão, trabalhando, sofrendo e rezando com o povo de lá, só restou a confirmação danada de que os suspiros dos selvagens ainda não se desfizeram. Eles se movem nos olhares inquietos e suspeitos de milhares de homens que teimam em não se entregar à morte antecipada, porque precisam viver. Nós queremos continuar a luta dos antigos. Ela não terminou com a destruição do Caldeirão, porque a madeira da Santa Cruz do Deserto ainda indica para os lados o caminho reto do trabalho, e — para as alturas celestiais — os sonhos do seu povo.
   Agora, sentado aqui neste canto de sala, rodeado de suspiros e de palavras que não falam só de saudade, vejo o povo lamentando a morte do beato José Lourenço, que na vida soube amar ao próximo e trabalhar por ele. Com os olhos molhados e o coração encolhido sinto também a falta dele. Morreu antes do tempo, embora só Deus saiba mesmo como as coisas devem ser. Quando elas acontecem é que o destino estira-se nos sentidos da gente.
   Mesmo diante do corpo do beato Lourenço, que continua vivo perante o seu povo, não vou parar de contar a origem dos mistérios que encobrem a verdade sobre o Caldeirão, seu desenvolvimento, as perseguições e demais desgraças que culminaram nos funestos acontecimentos da violenta destruição da Santa Cruz do Deserto pelas armas militares do Ceará. Também falarei das beneméritas e maravilhosas maneiras de como o beato Lourenço e seus guerreiros construíram um mundo novo e exaltaram a fé cristã nos confins do Cariri, lá nos altos pedregosos do Caldeirão dos Jesuítas.
   Nada aumentarei ou diminuirei, porque se assim não proceder, o senhor pode crer, o beato, ali mesmo morto no caixão, será capaz de levantar-se e me mostrar a retidão dos fatos. Que Deus me perdoe.
   Menino, oh menino, não deixa a vela apagar não. Pede para Mariana trazer outra. A verdadeira luz não se apaga. Eu preciso de claridade para falar ao senhor, porque ainda temos que esperar muitas horas para levar o beato José Lourenço à sua última morada, lá no Socorro. 

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