Monólogo em Único Ato de Cláudio Aguiar
A Última Noite de Kafka
Noite de 3 de junho de 1924. Kafka ocupa uma das enfermarias do sanatório de Kierling, nos arredores de Viena. O local oferece ampla visão do Danúbio, exatamente onde o famoso rio faz uma curva de noventa graus e retoma seu curso retilíneo. Deitado sobre a cama, imóvel, parece agonizar nos estertores finais das crises de laringe, provocadas pela tuberculose. No entanto, sua mente e seu coração não estão ali, mas em Praga. Neste momento, atrás de sua cama, acende-se a tela de vídeo com imagens de Praga, sugerindo, de saída, a visão da vetusta ponte Carlos. Ali, ora ele olha para as águas tranquilas do rio Moldávia, ora para a torre da Catedral ou para o Castelo, do outro lado do rio, entre fragmentadas nuvens sob raios solares em permanente mutação, indo do fogo aceso ao azul pálido, prenúncio da noite que se avizinha. Em sua turva visão, a tarde morria sobre o céu de Praga. Não só a noite.
Naquele mesmo instante, no leito do sanatório de Kierling, ele também agoniza. Teme a chegada da noite. A última noite. Sua garganta, há mais de quarenta dias, como ocorre com a agonia do faquir, que ele chamara de “o artista da fome” (titulo, aliás, de um de seus contos que ele acabara de revisar, cujas páginas ainda se espalham ao seu lado), está praticamente obstruída. Ele já não pode engolir os alimentos, por isso, sabe que terá poucas horas de vida. Mesmo assim, quer viver. Tenta levantar-se, porém, cai. Repete a cena algumas vezes. Chama várias vezes por Dora, que não vem. A luz começa a ficar escassa e o ambiente escurece lentamente.
Como se fora algo vindo de muito longe, do escuro profundo à escassa luz, de repente, surgem bolinhas brancas a saltar, sozinhas, em profusos, aleatórios e inexplicáveis movimentos.
De longe, lenta e tranquilamente, ouve-se o poema sinfônico Moldávia, de Smetana. A sombra de Kafka começa a mover-se, porém, com clara dificuldade. Ele tenta levantar-se da cama. Desvanece-se a sombra e, em seu lugar, surge, quase num efeito de câmera lenta, a insólita figura do Golem, que se movimenta. Em seguida, a sombra estanca sobre o corpo de Kafka, que permanece imóvel sobre a cama.
Após um rápido silêncio, a música cresce, enquanto uma voz estranha – que pode ser interpretada como se pertencesse ao Golem –, ecoa pelo ar pronunciando palavras de Kafka, como se fossem a epígrafe do espetáculo:
Voz (em off) - Não é necessário que você saia de casa. Fique junto à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, só espere. Nem mesmo espere, totalmente em silêncio e sozinho. O mundo irá oferecer-se a você para o próprio desmascaramento; não pode fazer outra coisa. Extasiado ele irá contorcer-se a seus pés.
Outra vez o silêncio domina o ambiente por alguns segundos. Enfim, o Golem vai saindo, devagar, da frente de Kafka. O foco de luz cresce sobre ele. Senta-se sobre a cama e, cansado, a debater-se contra o mal que o aflige, fala:
Eu não estou aqui...
...
Sanatório de Kierling, Viena!
Prefiro que me vejam na velha Praga.
Apesar disso, sei que estou aqui,
nesta enfermaria para onde vim
contra a vontade. Afinal,
que vontade pode manifestar o paciente?
No meu caso se cumpre a antiga regra:
todos os dias uma gaiola sai, vazia,
à procura de algum pássaro...
A noite avança impassivelmente.
Os amigos queridos que me acompanham,
há dias, sem descanso, mais do que amigos,
verdadeiros anjos da guarda
– Dora e Dr. Klopstock –
dormem, ali, na dependência ao lado.
Ainda que me falte o fôlego
e a voz ameace fugir da garganta,
ferida e aniquilada,
falarei sem parar, mesmo sabendo
que jamais serei ouvido e entendido.
Por isso, usarei mais o pensamento
do que a expressão natural de uma voz,
que vem sumindo, tal como ocorre
com a esperança dos náufragos
surpreendidos pela tempestade,
que perdem a noção do futuro
e vivem apenas o presente sem fim.